2019



6ª Trama:

O U T R A S P A L A V R A S

“Em um momento mágico de sua infância, a página de um livro - aquela série de cifras estranhas e confusas - transformou-se em significado. Palavras lhe falaram, desistiram de seus segredos; naquele momento, universos inteiros se abriram. Você se tornou, irrevogavelmente, um leitor ”.

Albert Manguel

Ponta das Margaridas

Levantou às 3, às 4 partiu na velha canoa costeando o lombo do leste, devagarinho, na flor da maré grande. Olhando de esguelha pra não esbarrar em pesqueiro coberto, Biô cantarolava baixinho e remava crispando a água nos dois lados pra fazer rumo certeiro no cardume de tainha. Rede pronta na proa, branquinha na garrafa, já distinguia o vulto cabeludo da Ilha do Medo quando o primeiro pingo bateu como um cascudo na aba do boné. Olhou pra cima, pro breu do céu e recebeu outro pingo. Dessa vez acertou-lhe o olho direito lavando as remelas e clareando a visão pra aurora que avermelhava acima da proa. Biô, tirando força dos braços magros e ressequidos de muitos verões, fez a “Margarida” deslizar veloz contornado o lombo e ganhando mar aberto. De repente, o que era claro ficou escuro, o céu enturvou e o vento soprou água do mar nas narinas de Biô. Margarida rodopiava num samba de roda encachaçado quando um peixe voador raspou-lhe a orelha e um fio de sangue correu, cor de rosa, sobre a camisa encharcada. Lá se foi o remo, a branquinha vazou, a rede escorregando pela beirada, parecia fazer seu trabalho de todos os dias, espalhando-se sobre a água com suas bóias coloridas. Margarida bebeu água, Biô também. O vento gelado chicoteava seu corpo, a canoa empinava e mergulhava na vaga: foi uma, veio a segunda, na terceira vez cuspiu Biô, mergulhou e não mais voltou, partida ao meio por um raio certeiro. às 12, na praia deserta: restos de rede, tralhas de pesca, pedaços de pau, uma flor, um vidro de perfume e um rastro de peixe grande que se estendia da beira da água até o corpo de Biô. Quem viu, contou do sorriso nos lábios do pescador e do cheiro forte de alfazema que se espalhou pela praia com a brisa leve da Bonança.

Sérgio Araújo

O U T R A S T R A M A S
I N F O
qr code
O R C I D
C O M P A R T I L H A R

D O W N L O A D ¨ E-BOOK

B I B L I O T E C A

Voltar ao Topo