23:59
O cabo negro e estriado serpenteava pelo piso de madeira enroscando aqui e ali nos móveis estragados pelo tempo e seguia mesa acima tão esticado que perecia poder partir-se a qualquer momento. Sobre a mesa jazia um copo de papel, vazio, desses de aniversário, com motivos infantis: um palhaço com cabeleira colorida, serpentinas,confetes, língua-de-sogra; tudo isso com muitas cores para fingir alegria e comemoração. Adiante, refletindo a luz de uma lâmpada incandescente, como uma serpente estreita e verde, escorria lentamente o líquido derramado do copo por entre aos dedos finos e inertes de Teresa.
23:58
Um relógio despertador emoldurado por figuras de anjos barrocos cavalgava uma mesinha de cabeceira com duas gavetas entreabertas. Mais adiante, em diagonal, a sombra com gestos leves tingia a parede branca do quarto de Teresa.
Como num sonho ruim, ela acordou sufocada pela secura do ar, os cabelos molhados de suor que também escorria por todo o corpo, a fez, lentamente, abrir os olhos a tempo de ver-se através do espelho da penteadeira, flutuando como a assistente do mágico no circo Eureka.
Na sonolência que ainda sentia, zonza e surpresa pela insólita situação, Teresa não sabia se flutuava mesmo pelo quarto como um astronauta ou se o quarto era uma espaçonave que lhe acolhia com gentileza e a fazia sentir-se bem na incerteza dos fatos. O certo é que agora sobrevoava a mesa da sala que ainda guardava os restos da festinha de aniversário do seu único filho.
23:57
No televisor ligado, Tom corria desesperadamente atrás de Jerry e derrapava numa esquina como um carro no asfalto molhado.
23:56
Teresa imóvel na cama, não sabia da noite e o que lhe trazia, não sonhava, não cabia no tempo estreito que agora tinha.
23:55
A porta abriu com um leve estalo. Agigantando-se pela sala vazia, a sombra com chapéu, atravessou o corredor esfregando-se ora numa parede, ora noutra, empurrada pelas luzes dos outros cômodos que se alternavam ao longo do caminho até parar em frente à porta do quarto onde Teresa dormia, empurrrando-a devagar para jogar uma tira de luz sobre as pernas lisas de Teresa.
Sérgio Araújo